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abraham-darkrow — Borroes
Published: 2005-11-13 17:21:22 +0000 UTC; Views: 375; Favourites: 0; Downloads: 3
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Description Borrões
por Bruno Minervino Serra Gaspari (abraham-darkrow.deviantart.com)

Hans acabara de retornar do casamento de uma grande amiga. A noite abafada anunciava chuva, e tudo o que ele não queria era se molhar, pois a festa foi nas vizinhanças e ele havia ido a pé para lá, afinal, era um bairro muito calmo e não havia perigo em andar durante a noite. Parou um instante diante da porta da frente, ofegante. Era um total sedentário, nunca fazia exercícios mais elaborados que o suave deslizar de seu pincel sobre a tela. Sua arte finalmente alcançara sucesso.
Após descansar, Hans adiantou-se em direção a porta. Destrancou-a com sucesso, apesar do escuro, e logo ela estava aberta. A imensidão sombria do interior da casa se estendia diante dele, com exceção apenas de alguns pontos onde a fraca luz que entrava se refletia. Tateou a parede em busca do interruptor.
Uma vez com a luz acesa, ele caminhou em direção a poltrona, deixando o paletó lá para que a empregada o lavasse na manhã seguinte. Iria usar ele na próxima semana, quando a sua arte estaria exposta num bairro distante e, por tanto, precisava causar boa impressão. Sabia o suficiente de apreciadores de arte. Todos são excêntricos e normalmente levam a sério não apenas a arte da pessoa, mas também os sentimentos e o visual dela.
Mesmo sendo uma pessoa sedentária, a boa dieta que estabeleceu para si não o fez engordar e nem criar nenhum tipo de complicação na saúde. O fino cabelo negro caia até o queixo, o que poderia ser visto como algo mais voltado ao gótico do que ao artista expressionista que era. Sua arte poderia ser vista pelas pessoas que não a apreciavam como um monte de traços e borrões que ele adicionava cuidadosamente com a ajuda de pinceis.
Sua pintura ia alem do expressionismo. Entre suas obras mais apreciadas da última exposição, estava uma bela rosa que levara dias para ser pintada em meio a uma parede pichada com palavras de desesperança. “A esperança em meio ao caos”, foi como o comprador, um excêntrico rapaz de cabelos vermelhos, a denominou.
A barriga dele roncava. Não havia se alimentado direito durante todo o dia. Possuía o costume de não comer nada em festas, habito adquirido depois de uma péssima experiência durante a infância. Só de lembrar do ocorrido seu estômago doía. Foram dois dias terríveis. Foi em direção da cozinha.
Ao entrar na cozinha, logo se viu diante do freezer, de onde tirou algum prato congelado e colocou diretamente no microondas. Sentou-se e aguardou ele aquecer. A chuva começou a cair.

***

Do lado de fora da casa, uma figura espreitava agachada em meio à folhagem. A esfarrapada capa negra repousava sobre a grama sem se sujar, tremulando levemente com o vento que soprava anunciando chuva, envolvendo um pálido esqueleto que, silenciosamente, observava alguém chegar à casa.
Seus macabros ossos possuíam, em alguns pontos, camadas de carne podre que literalmente se ligavam aos ossos apenas por frágeis nervos. Diversas ataduras estavam enroladas entre as juntas, algumas acompanhadas por correntes enferrujadas que certamente causavam um ruído incomodo conforme o ser se movimentava. Em sua mão direita, porém, repousava a foice. Feita de madeira milenar ricamente ornamentada com prata, o impressionante objeto de quase dois metros de comprimento terminava, em uma das pontas, em uma lâmina de gume afiado, produzido com um metal que as mãos humanas nunca tocaram, e na outra, uma corrente longa com uma espécie de coleira.
Observou o jovem entrar na casa. Puxou em seguida a atadura próxima ao pulso esquerdo e arranhou com o dedo o nome da vítima. Levantou o capuz sobre a cabeça para se proteger da chuva que logo cairia. Sabia que ninguém poderia vê-la lá. Apenas os condenados podem vislumbrar a Morte. Sua visita é a única certeza de um ser durante a vida.
Segurou ao cabo da foice mais firme quando a luz da cozinha diante de si acendeu. Apenas a porta separava a vítima da Morte.

***

No andar de cima, o ladrão ouvia que não estava mais sozinho na casa. O barulho da tranca da porta sendo aberta o colocou em alerta. Ficou imóvel quando a luz no andar de baixo foi acesa. Segurou a arma escondida no bolso do casaco e caminhou nas pontas dos pés em direção ao ateliê que ocupava um dos três quartos do andar superior.

***

Hans sentou-se diante da mesa e fatiou a lasanha que transferiu para um prato. Comeu com vontade, enquanto pensava no novo quadro que iria pintar. Ao terminar o jantar, abandonou a louça na pia e caminhou em direção a escada. Subiu os degraus com calma, bocejando. A bebida entorpecia seus sentidos e sentia um sono extremo, mas ia trabalhar antes de dormir. Não podia deixar a inspiração passar.

***

O vulto na cozinha provavelmente havia deixado a louça na pia, o que a Morte percebeu graças ao barulho resultante. Logo a luz da cozinha foi desligada. O ser envolto no manto se levantou e deslizou em direção da porta, que se abriu como se não estivesse trancada.
Enxergando perfeitamente no escuro, ela caminhou silenciosamente em direção da sala, esperando o momento aos pés da escada.

***

O ladrão se esgueirou pelo quarto até um grande armário onde o artista guardava as tintas. Ouviu a movimentação no andar de baixo e fechou a porta diante de si. Encostou as costas na parede do armário, que, por ser de alumínio, fez um barulho fino que com certeza teria sido ouvido se o jovem não estivesse bêbado e subindo a barulhenta escada de madeira antiga.

***

O pintor alcançou o andar de cima sem olhar para trás. Ligou a luz do corredor que separava os três cômodos e se adiantou para o seu quarto. Notou a janela aberta e, intrigado, tentou lembrar se a havia deixado assim. Dando de ombros, caminhou em direção da cama e se sentou, retirando os sapatos sem pressa. As pálpebras pesavam sobre os olhos, mas ele não desejava dormir. Queria criar, queria usufruir de toda a inspiração que possuía naquele momento, um sentimento que nem o melhor artista pode descrever.
Trocou-se, vestindo a calça do pijama branco. Sua pele pálida pele falta de contato com o sol incomodava-o. Pensou se deveria passar a pintar lá fora, à luz do dia, e não dentro de seu ateliê. Resolveu deixar isso para o dia seguinte. Adiantou-se na direção do banheiro de sua suíte.
Saiu após escovar os dentes e lavar o rosto, caminhando até seu ateliê. Acendeu a luz do cômodo, que era uma ampla sala com um piso coberto por uma lona branca, ainda com poucas manchas de tinta, uma vez que ele só morava lá há pouco mais de uma semana. As paredes eram cobertas com telas, algumas usadas, outras não, e, encostado na parede ao lado dele, estava o grande armário onde guardava os materiais. Havia material suficiente lá para pintar quadros que satisfariam mais de quatro exposições. A luz fria fazia um leve som característico.
Hans, então, puxou a corda da veneziana localizada na janela ao lado do armário. Logo as luzes da cidade poderiam ser vistas através das frestas.

***

A Morte pisou no primeiro degrau e iniciou sua subida.

***

O ladrão fitou o artista entrar no quarto através de uma pequena abertura da porta do armário. Observou-o atravessar o quarto e parar ao lado, onde havia uma janela. Preparou a arma.

***

Hans decidiu que o melhor seria iniciar a pintura com a tinta azul que havia comprado recentemente. A linda tonalidade daria ao seu quadro o toque que precisava para retratar uma elaborada composição do nascer do sol. Colocou uma grande tela no chão, aonde trabalharia cuidadosamente com as cores. Primeiro adicionaria a tinta azul em listras, para então espalhar e começar a tonalizar. O sol, brilhante, seria onde exprimiria seu estilo. As cores seriam usadas aos borrões, em diversos tons de amarelo, laranja e vermelho, a fim de expressar o que ele desejava. Virou-se na direção do armário de tintas e foi em sua direção buscando a tinta azul.

***
A subida continuou sem pressa. Estava no segundo andar quando ouviu o barulho, quase simultâneo, de uma porta de alumínio sendo aberta e um tiro, disparado.

***
A fumaça que saia do revólver se dispersou no ar. O assassino fitou pela primeira vez a sua vítima, enquanto o sangue espirrado pelo contato da bala com o artista borrava a tela que estava no chão.

***

        Hans estava em choque, tal foi sua surpresa ao se deparar com o estranho dentro do armário. Não notou a principio que havia sido baleado, até a dor cortante invadir sua consciência. O tiro havia atingido o coração, e o sangue escorria e pingava. Ele deu alguns passos para trás, hesitante, enquanto o sangue manchava a tela que ele ia começar a pintar. Demorou cerca de cinco segundos até finalmente cair sobre a mesma. O sangue não parava de escorrer. Vislumbrou o espectro escuro que aguardava junto a porta antes de perder seus sentidos.

***

O bandido saiu do quarto, correndo, logo após disparar. Atravessou o espectro que o artista viu como se ele nem existisse. A Morte pareceu nem sentir quando o homem passou pelo meio do seu corpo.

***
Hans voltou à consciência flutuando ao lado de seu corpo. O espectro havia amarrado uma longa corrente em volta de seu pescoço, e percebeu que não possuía um dos pés. A foice do ser estava brilhando num líquido branco e, antes de ser arrastado por ele para fora do ateliê, apreciou a sua última obra, aquela que não veriam como arte e sim como um crime.
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