HOME | DD

Description
Criança dos anos 80, eu sempre sofri um caso típico de amor e ódio à tela da televisão. Era bem simples, tudo dependia do que o aparelho queria me mostrar. Me ganhava nos desenhos, nos filmes de ação e na programação mexicana, de baixo custo e por isso mesmo muito engraçada. Na adolescência, a coisa mudou para o que quer que fosse mais barato importar do japão. A produção continuava de quinta, mas o ritmo e o humor eram mais frenéticos, com certeza. Hollywood continuava, claro, tudo vindo em doses de ação, lições de moral e cenas de pancadaria. É aí que vale lembrar os sempre presentes 'profetas do apocalipse' - desses, parece que cada geração deve aturar os seus: "A crescente violência na televisão e nos vídeo-games vai estimular nossos jovens para coisas erradas. Vai torná-los insensíveis às dores do mundo". Pois é, então olhe à sua volta, leitor, e saiba que a culpa é da televisão, dos filmes e dos vídeo-games! Fácil, não?

Pense bem, isso explicaria porque os nossos políticos e líderes ainda não encontraram a causa para toda essa violência e descaso que temos visto pelas ruas. Só pode ser culpa desses estímulos, mesmo. Também explicaria um governo que acusa a mídia de gerar intrigas. Enfim, nosso presidente estaria certo e, junto a ele, todos os conspiradores de fundo de quintal que afirmam que tudo o que vivemos e vemos é manipulado por uma malícia invisível e intocável. Do fundo de seu poço esquecido os profetas apocalípticos podem berrar que estavam certos. Enquanto cá em cima, a violência continua a custar tempo, dinheiro e vidas. E agora que eu e você concordamos sobre um culpado, o que se pode fazer? Queimar cada cinema, destruir cada televisão... desligue tudo e vá às ruas sem medo. Você estará à salvo. Ah, e pode ficar ainda mais tranqüilo sabendo que seus filhos irão brincar na rua, como nos bons e velhos tempos.

Acha que esta crônica está cheia de absurdos? Pois onde estamos vivendo, quem paga impostos não tem o direito de sair de casa em paz. Não se pode ler um jornal sem ser confrontado com uma lista de mortos que não são vítimas de balas, mas de uma corja de corruptos que agem como um câncer, na capital do país - os tiros que mataram e matarão tantos mais até este texto ser publicado são mera conseqüência. Não temos mais aqueles absurdos profetas, por que o apocalipse não poderia ser muito pior do que este estado de guerra civil. Ser cidadão é andar vulnerável e ser alvo das mazelas proliferadas em anos de descaso político. Absurdo é isso. Além do mais, o que você anda vendo de bom, na sua televisão? Na minha, eu fico com medo do que o senhor William possa vir me dizer, na hora do jantar.

Description
Criança dos anos 80, eu sempre sofri um caso típico de amor e ódio à tela da televisão. Era bem simples, tudo dependia do que o aparelho queria me mostrar. Me ganhava nos desenhos, nos filmes de ação e na programação mexicana, de baixo custo e por isso mesmo muito engraçada. Na adolescência, a coisa mudou para o que quer que fosse mais barato importar do japão. A produção continuava de quinta, mas o ritmo e o humor eram mais frenéticos, com certeza. Hollywood continuava, claro, tudo vindo em doses de ação, lições de moral e cenas de pancadaria. É aí que vale lembrar os sempre presentes 'profetas do apocalipse' - desses, parece que cada geração deve aturar os seus: "A crescente violência na televisão e nos vídeo-games vai estimular nossos jovens para coisas erradas. Vai torná-los insensíveis às dores do mundo". Pois é, então olhe à sua volta, leitor, e saiba que a culpa é da televisão, dos filmes e dos vídeo-games! Fácil, não?

Pense bem, isso explicaria porque os nossos políticos e líderes ainda não encontraram a causa para toda essa violência e descaso que temos visto pelas ruas. Só pode ser culpa desses estímulos, mesmo. Também explicaria um governo que acusa a mídia de gerar intrigas. Enfim, nosso presidente estaria certo e, junto a ele, todos os conspiradores de fundo de quintal que afirmam que tudo o que vivemos e vemos é manipulado por uma malícia invisível e intocável. Do fundo de seu poço esquecido os profetas apocalípticos podem berrar que estavam certos. Enquanto cá em cima, a violência continua a custar tempo, dinheiro e vidas. E agora que eu e você concordamos sobre um culpado, o que se pode fazer? Queimar cada cinema, destruir cada televisão... desligue tudo e vá às ruas sem medo. Você estará à salvo. Ah, e pode ficar ainda mais tranqüilo sabendo que seus filhos irão brincar na rua, como nos bons e velhos tempos.

Acha que esta crônica está cheia de absurdos? Pois onde estamos vivendo, quem paga impostos não tem o direito de sair de casa em paz. Não se pode ler um jornal sem ser confrontado com uma lista de mortos que não são vítimas de balas, mas de uma corja de corruptos que agem como um câncer, na capital do país - os tiros que mataram e matarão tantos mais até este texto ser publicado são mera conseqüência. Não temos mais aqueles absurdos profetas, por que o apocalipse não poderia ser muito pior do que este estado de guerra civil. Ser cidadão é andar vulnerável e ser alvo das mazelas proliferadas em anos de descaso político. Absurdo é isso. Além do mais, o que você anda vendo de bom, na sua televisão? Na minha, eu fico com medo do que o senhor William possa vir me dizer, na hora do jantar.