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Para falar a verdade, eu não me lembro muito bem. Para ser, realmente, sincero, eu não tenho a menor idéia. Mas isso não me preocupa pois sei que poucos, ou talvez ninguém, se lembre de como foi a vida antes dos três anos. Até os cinco tudo não se passa de “flashes”, vislumbres atemporais de coisas sem sentido.

A primeira coisa que eu tenho realmente recordação é da dor. Vinte e oito pontos do lado esquerdo do meu rosto, muito sangue, muito choro, muita dor. São essas minhas primeiras lembranças de vida. Mas não, elas nunca me incomodaram, pois juntamente com elas vem a recordação daquele cheirinho gostoso do bolo de cenoura da vovó.

A gente esquece, quando é novinho, de muita coisa que acontece, mas é impressionante como todos aqueles desenhos que passavam de tarde permanecem claros na memória. Mais impressionante ainda é lembrar da sensação de angústia quando o Jornal Nacional estava para acabar e o titio falava: “boa-noite”. E a gente tinha que ir dormir.
E aquela roupa do Batman? Eu nunca vou esquecer daquela roupa do Batman, nem dos Bananas de Pijama, nem do pirata e muito menos do Dunga, dos sete anões.

Quando eu era mais novo era muito mais fácil falar do modo que eu levava a minha vida, que eu escrevia minha história... quanto mais cicatrizes, mais histórias pra contar. Era muito fácil falar que os pontos no meu rosto haviam sido obra de um tubarão faminto e me tornar um rei por isso. Ou então falar que aquele carro grande e branco do papai era uma limusine apelidada carinhosamente de Kombi. Era muito mais fácil.

Quando te perguntam hoje: “como você escreve a sua história?”. Tudo toma um ar tão político, a gente já se apruma todo, faz voz grave, cara séria e começa a catar pequenos pedaços de lembrança que deixem claro ao outro que a gente é superior, correto, corajoso, alegre, enérgico, inteligente e tudo isso ao mesmo tempo.

Por que que os meus objetivos quando eu era pequeno se resumiam a virar gente grande e, a medida que o tempo passa, os maiores objetivos viram a própria infância?
Por que que eu tenho que ser superior, correto, corajoso, alegre, enérgico e inteligente, tudo ao mesmo tempo?
E se eu falar que eu sou medroso, que eu choro, que eu já errei, e muito, e se eu falasse isso? O pessoal tá com mania de esquecer quem realmente é. Fica todo mundo falando que tem o poder de mudar o mundo – e tem mesmo! – mas não chegando em casa, espichando-se no sofá e lá ficando, roncando o dia inteiro.

O que eu poderia fazer para mudar o mundo? Eu podia começar sendo honesto. Se todo mundo fosse honesto surgiria, naturalmente, uma coisa chamada aceitação, que traria consigo respeito e igualdade. Daí, quem sabe, quando nos perguntassem como nós escrevemos nossa história a gente até tivesse orgulho em fazer um ar político, político honesto, quando essas duas palavras perderem a cara de antítese.

Se eu escrevesse na minha autobiografia tudo o que a sociedade quer que eu escreva eu simplesmente copiava o roteiro de um desses filmes ou copiava o significado da palavra perfeição do dicionário.
Por que que toda vida tem que ter todo um significado por de trás quando a resposta veio no começo da minha pergunta? Qual o objetivo da minha vida? Vida, ué. Entenda-se vida como vida plena, real. Com alegrias e com todas as tristezas que fazem parte e se mostram as maiores professoras. Tem gente que passa a vida inteira procurando o significado da vida, passa tanto tempo que esquece da vida e que ela merece ser vivida.

Eu fazia xixi na cama. É, é isso mesmo. Sujei muito lençol, sujei mesmo. Eu tive muito pesadelo, eu acordava chorando e ia dormir no meio da mamãe e do papai. Não, não tem fantasmas na minha casa e é mentira, eu nunca vi a loira do banheiro. Lembra da brincadeira do copo? Então, era eu quem tava empurrando. Meu tio nunca teve uma Ferrari e eu nunca fiz aquele gol. Aquela tarefa, eu copiei. Aquela roupa, era emprestada. Aquele acerto não fui eu. Aquele erro, foi meu. O que marca a minha história é a rotina. Não sou super-herói de ninguém e a minha casa nem é tão grande assim.

Aqueles vinte e oito pontos do tubarão, engraçado, o tubarão era terrestre, tinha quatro patinhas e eu tinha a leve impressão de que ele latia. Ah, é! A limusine, poxa, eu só inverti a ordem das palavras. Era a Kombi do papai apelidada carinhosamente de limusine; agora sim, tá tudo certo.
Sendo assim autobiografia, sendo assim covarde, chorão, errado; sendo assim escreve minha história.

Sendo assim, escrevo hoje a minha história.

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Para falar a verdade, eu não me lembro muito bem. Para ser, realmente, sincero, eu não tenho a menor idéia. Mas isso não me preocupa pois sei que poucos, ou talvez ninguém, se lembre de como foi a vida antes dos três anos. Até os cinco tudo não se passa de “flashes”, vislumbres atemporais de coisas sem sentido.

A primeira coisa que eu tenho realmente recordação é da dor. Vinte e oito pontos do lado esquerdo do meu rosto, muito sangue, muito choro, muita dor. São essas minhas primeiras lembranças de vida. Mas não, elas nunca me incomodaram, pois juntamente com elas vem a recordação daquele cheirinho gostoso do bolo de cenoura da vovó.

A gente esquece, quando é novinho, de muita coisa que acontece, mas é impressionante como todos aqueles desenhos que passavam de tarde permanecem claros na memória. Mais impressionante ainda é lembrar da sensação de angústia quando o Jornal Nacional estava para acabar e o titio falava: “boa-noite”. E a gente tinha que ir dormir.
E aquela roupa do Batman? Eu nunca vou esquecer daquela roupa do Batman, nem dos Bananas de Pijama, nem do pirata e muito menos do Dunga, dos sete anões.

Quando eu era mais novo era muito mais fácil falar do modo que eu levava a minha vida, que eu escrevia minha história... quanto mais cicatrizes, mais histórias pra contar. Era muito fácil falar que os pontos no meu rosto haviam sido obra de um tubarão faminto e me tornar um rei por isso. Ou então falar que aquele carro grande e branco do papai era uma limusine apelidada carinhosamente de Kombi. Era muito mais fácil.

Quando te perguntam hoje: “como você escreve a sua história?”. Tudo toma um ar tão político, a gente já se apruma todo, faz voz grave, cara séria e começa a catar pequenos pedaços de lembrança que deixem claro ao outro que a gente é superior, correto, corajoso, alegre, enérgico, inteligente e tudo isso ao mesmo tempo.

Por que que os meus objetivos quando eu era pequeno se resumiam a virar gente grande e, a medida que o tempo passa, os maiores objetivos viram a própria infância?
Por que que eu tenho que ser superior, correto, corajoso, alegre, enérgico e inteligente, tudo ao mesmo tempo?
E se eu falar que eu sou medroso, que eu choro, que eu já errei, e muito, e se eu falasse isso? O pessoal tá com mania de esquecer quem realmente é. Fica todo mundo falando que tem o poder de mudar o mundo – e tem mesmo! – mas não chegando em casa, espichando-se no sofá e lá ficando, roncando o dia inteiro.

O que eu poderia fazer para mudar o mundo? Eu podia começar sendo honesto. Se todo mundo fosse honesto surgiria, naturalmente, uma coisa chamada aceitação, que traria consigo respeito e igualdade. Daí, quem sabe, quando nos perguntassem como nós escrevemos nossa história a gente até tivesse orgulho em fazer um ar político, político honesto, quando essas duas palavras perderem a cara de antítese.

Se eu escrevesse na minha autobiografia tudo o que a sociedade quer que eu escreva eu simplesmente copiava o roteiro de um desses filmes ou copiava o significado da palavra perfeição do dicionário.
Por que que toda vida tem que ter todo um significado por de trás quando a resposta veio no começo da minha pergunta? Qual o objetivo da minha vida? Vida, ué. Entenda-se vida como vida plena, real. Com alegrias e com todas as tristezas que fazem parte e se mostram as maiores professoras. Tem gente que passa a vida inteira procurando o significado da vida, passa tanto tempo que esquece da vida e que ela merece ser vivida.

Eu fazia xixi na cama. É, é isso mesmo. Sujei muito lençol, sujei mesmo. Eu tive muito pesadelo, eu acordava chorando e ia dormir no meio da mamãe e do papai. Não, não tem fantasmas na minha casa e é mentira, eu nunca vi a loira do banheiro. Lembra da brincadeira do copo? Então, era eu quem tava empurrando. Meu tio nunca teve uma Ferrari e eu nunca fiz aquele gol. Aquela tarefa, eu copiei. Aquela roupa, era emprestada. Aquele acerto não fui eu. Aquele erro, foi meu. O que marca a minha história é a rotina. Não sou super-herói de ninguém e a minha casa nem é tão grande assim.

Aqueles vinte e oito pontos do tubarão, engraçado, o tubarão era terrestre, tinha quatro patinhas e eu tinha a leve impressão de que ele latia. Ah, é! A limusine, poxa, eu só inverti a ordem das palavras. Era a Kombi do papai apelidada carinhosamente de limusine; agora sim, tá tudo certo.
Sendo assim autobiografia, sendo assim covarde, chorão, errado; sendo assim escreve minha história.

Sendo assim, escrevo hoje a minha história.